Qual o futuro da alimentação? Como garantir que os recursos chegam para todos?
Alimentação Mundial – Situação Atual
Em novembro de 2022, a população global atingiu a marca de 8 mil milhões de pessoas, prevendo-se que esse número aumente para 9 mil milhões até 2050 (FAO, 2016). Este crescimento exponencial exerce uma forte pressão sobre os sistemas agroalimentares, que são forçados a produzir cada vez mais, devendo, ao mesmo tempo, garantir a sustentabilidade dos processos de produção e abastecimento.
Simultaneamente, tem sido observado um aumento da prosperidade económica em todo o mundo, refletido na tendência crescente do Produto Interno Bruto (PIB) a nível global. Nota-se que os países mais prósperos tendem a apresentar maiores níveis de consumo de alimentos, em especial de proteína animal, sendo esta a componente que mais exerce pressão sobre os sistemas de produção de alimentos. Desta forma, a continuação da tendência crescente do PIB, refletir-se-á num aumento do consumo de alimentos, sobretudo proteína, essencialmente feito através de um aumento do consumo de proteína animal.
Portugal, quando combinado o consumo de carne e o de peixe, é o país do mundo, juntamente com o USA, com maior consumo de proteína animal per capita (OurWorldInData, 2023). No entanto, é fundamental destacar que o consumo de produtos de origem animal tende a produzir pressão ambiental maior.
Pressão Ambiental da Agricultura
Os sistemas agrícolas suprem a necessidade de alimentação da humanidade, mas colocam também uma enorme pressão na biosfera. O peso relativo da agricultura em relação a outras atividades económicas em termos de impacte ambiental negativo, varia entre 26% para os gases de efeitos de estufa (GEE), 50% para a utilização da área terrestre e 70% para o consumo da água disponível. É também responsável pela perda de 94% para da biodiversidade (tendo em conta que 94% da biomassa atual de mamíferos na biosfera é de mamíferos utilizados para a produção animal), e está associada a 78% das massas de água eutrofizadas (poluição das massas de águas com fósforo e azoto, provenientes da fertilização dos campos agrícolas).
Produção de Alimentos no Futuro
Como mencionado anteriormente, o crescimento da população global exigirá um aumento na produção de alimentos. Segundo as estimativas da FAO, será necessário aumentar a produção de alimentos em aproximadamente 60% até 2050 (FAO, 2016). Historicamente, temos demonstrado a capacidade de responder a esses aumentos na procura, como evidenciado pelo aumento triplo na produção de alimentos entre 1961 e 2011.
No entanto, tudo indica que as alterações climáticas, a concorrência crescente na utilização dos recursos de terra e água e o modelo tecnológico de intensificação produtiva dominante vão tornar muito mais difícil que no futuro se venham a alcançar ganhos de produtividade, idênticos aos do passado, sem agravar os seus efeitos negativos sobre a biodiversidade, os recursos naturais e as emissões de GEE.
O modelo tecnológico agrícola dominante nas últimas décadas, baseado em ganhos de produtividade obtidos por um uso crescente de agroquímicos e de energia fóssil, não só têm vindo a dar sinais evidentes de redução das taxas e aumento das respetivas produtividades, como também do seu impacte crescentemente negativo sobre a sustentabilidade ambiental de cada vez maiores regiões do globo.
Neste contexto, é relevante salientar a crescente importância dos investimentos em inovação tecnológica agrícola. Esses investimentos têm o potencial de impulsionar uma transição ágil da atual produção agrícola, baseada num modelo de intensificação tecnológica predominante, para sistemas agrícolas que se baseiem em modelos de intensificação sustentável. Estes últimos fazem uso de tecnologias e práticas agrícolas frequentemente referidas como biológicas, de produção integrada, de precisão e/ou de conservação (ou regenerativas).
O objetivo é aumentar a produção de alimentos utilizando de forma mais eficiente os recursos disponíveis, ao mesmo tempo em que se adotam medidas para reduzir as emissões de carbono e se adapta às mudanças climáticas.
A controvérsia da produção/alimentação sustentável
Face a este grande desafio de alimentar a humanidade, da enorme pressão ambiental que representa e do foco na questão da proteína, surgem várias questões controversas sobre quais as melhores formas e práticas de abordar este desafio. Desta forma, apresentaremos em seguida alguns mitos e contra-mitos mais relevantes desta temática.
- A agricultura biológica é a forma de agricultura mais amiga do ambiente?
A agricultura biológica é comumente associada como a forma mais sustentável que existe de produzir alimentos. No entanto, este pensamento é baseado no argumento de que não são utilizados pesticidas de síntese e outras substâncias potencialmente prejudiciais, o que levará, portanto, a um benefício em termos de biodiversidade. Mas uma análise sistemática da agricultura biológica (Clark, M., Tilman, D., 2017) revela o seguinte:
- Devido a ser potencialmente menos produtiva em comparação com a agricultura convencional, leva ao uso de uma maior área de solo e, portanto, uma pressão acrescida sobre a biodiversidade, já que ficará menos área disponível para conservação da natureza;
- É quase sempre pior em termos de emissões de azoto e de fósforo para as águas;
- É melhor, em alguns casos, em termos de gases com efeito de estufa e em termos do uso de energia.
Esta informação desmente o pensamento de que a agricultura biológica é a única forma sustentável de praticar a agricultura. No entanto, também é importante ter cautela com o extremo oposto desse tipo de pensamento. Ou seja, a ideia de que a agricultura biológica não será capaz de alimentar a população global em 2050 devido a restrições de área agrícola e de azoto. Pois, com o avanço da pesquisa científica aplicada à agricultura biológica, é possível que até 2050 essa abordagem se torne mais eficiente e permita satisfazer as necessidades alimentares da humanidade (Morais et al., 2021).
Claro que, enquanto a agricultura biológica fará esta evolução até 2050, todas as outras versões de agricultura também o farão e, portanto, todas as diferentes formas de agricultura poderão, através da investigação e do desenvolvimento tecnológico, vir a ter um desempenho muito superior.
- O consumo de produtos alimentares deve ser “de proximidade”?
O consumo de alimentos produzidos localmente é, frequentemente, defendido como um elemento fundamental e indispensável para alcançar a sustentabilidade. Contudo, múltiplos estudos concluíram que, por exemplo, as emissões de GEE associadas ao transporte de alimentos constituem uma fração muito reduzida das emissões totais (Poore, J., Nemecek, T., 2018), pelo que seria muito mais importante que os alimentos, onde quer que sejam produzidos, o fossem da forma mais ambientalmente favorável do que serem necessariamente ser produzidos num local geograficamente próximo (Lisboa E-Nova, 2023).
Outros estudos produzidos posteriormente, indicariam o contrário (Li et al., 2022), no entanto demonstraram diversas falhas nos cálculos.
No entanto, não se pretende transmitir a ideia de que a redução das emissões de gases provenientes do transporte não seja benéfica. No entanto, em algumas situações, alimentos produzidos de forma mais sustentável, ainda que a uma maior distância, podem ter um impacte ambiental menor do que alimentos produzidos nas proximidades, mas de forma menos sustentável.
- Consumir produtos de origem animal é sempre prejudicial para o ambiente?
As preocupações ambientais relacionadas com o consumo de produtos de origem animal são um tema amplamente discutido nos dias de hoje. Quando alguém procura compreender melhor os impactes da alimentação à base de produtos de origem animal, muitas vezes surge a ideia de que esses alimentos têm sempre um impacte ambiental negativo superior aos alimentos de origem vegetal.
No entanto, esta comparações têm de ser bem analisadas. Por exemplo, se considerarmos o impacte por quilograma, o leite de vaca pode ter um impacte negativo maior do que a bebida de arroz. Por outro lado, quando comparamos o impacte por 100 gramas de proteína, o leite de vaca tem um impacte negativo muito menor.
É importante ter em mente que a forma como comparamos alimentos de origem animal e vegetal, em termos de impacte ambiental, pode variar dependendo da unidade de medida escolhida. Portanto, é importante considerar a unidade funcional correta ao avaliar o impacte ambiental de diferentes alimentos para obter uma imagem precisa de seu impacte sobre o meio ambiente (Lisboa E-Nova, 2023).
Continuando no tema dos alimentos de origem animal, considera-se que, do ponto de vista ambiental e de eficiência, as aves e os suínos (animais monogástricos, isto é, que só têm um estômago) são mais eficientes que os ruminantes. Por exemplo, as galinhas poedeiras conseguem disponibilizar-nos 25% da proteína que ingerem e os suínos 8,5%, sendo, sob este ponto de vista, mais eficientes que os bovinos e ovinos (Alexander et al., 2016). No entanto, se considerarmos apenas a conversão de proteína que pode ser utilizada para consumo humano, os ruminantes são os mais eficientes. Isto porque os ruminantes fazem o “milagre da multiplicação da proteína”: por cada 60 g de proteína, em média, que um ruminante ingere que poderia ser utilizado pelos humanos, disponibiliza 100 g. E tal não viola as leis da Física (conservação da massa) porque o ruminante vai buscar os outros 40 g de proteína à pastagem (onde essa proteína não está acessível para os humanos). Aqui, mais uma vez, a unidade funcional é relevante (FAO, 2022).
Média mundial | Conversão (média mundial) |
Ruminantes | 0,6 kg de proteína utilizável por humanos
1 kg de proteína utilizável para alimentação humana |
Monogástricos | 2 kg de proteína utilizável por humanos
1 kg de proteína utilizável para alimentação humana |
Quadro 1. Conversão de proteína: Ruminantes vs. Monogástricos. Fonte: Lisboa E-Nova, 2023. Mitos e Contra-Mitos na Sustentabilidade Ambiental da Alimentação. URL: https://lisboaenova.org/mitos-e-contra-mitos-na-sustentabilidade-ambiental-da-alimentacao/
Por último, é importante considerar a relação entre as emissões de metano e os ruminantes. O metano é um gás de efeito estufa com um potencial de aquecimento global cerca de 28 vezes superior ao do dióxido de carbono (CO2). A produção de metano pelos ruminantes faz parte de um ciclo natural, uma vez que, ao longo de aproximadamente 12 anos (por meio de processos químicos na atmosfera), o metano é transformado novamente em CO2. No entanto, isso não significa que o metano não represente um problema (Lisboa E-Nova, 2023).
Durante os 12 anos em que o metano permanece na atmosfera, contribui significativamente para o aquecimento global, tendo um impacte negativo muito mais intenso do que o CO2. Portanto, embora o metano seja eventualmente convertido em CO2, sua presença na atmosfera por um período limitado ainda é preocupante devido ao seu potencial de aquecimento global mais elevado (Lisboa E-Nova, 2023).
Concluindo…
Os desafios ambientais associados à produção de alimentos e o crescimento contínuo da população mundial tornam imperativa a procura por respostas e estratégias para enfrentar esses problemas. Enfrentar esses desafios requer esforços coordenados à escala global, bem como uma abordagem holística que tenha em conta não apenas a produção de alimentos, mas também o seu transporte, consumo e impacte ambiental.
Os investimentos em inovação tecnológica agrícola são cruciais para impulsionar uma transição eficaz em direção a modelos de produção agrícola mais sustentáveis, permitindo uma utilização mais eficiente dos recursos disponíveis.
A necessidade de considerar a unidade funcional adequada ao avaliar o impacte ambiental dos alimentos salienta a importância de análises detalhadas e abordagens flexíveis para determinar a melhor forma de produzir e consumir alimentos de maneira sustentável.
O encontro de soluções para os desafios da alimentação exige cooperação, pesquisa contínua e um compromisso global para garantir que os recursos alimentares chegam a todos de maneira equitativa, sustentável e ambientalmente responsável.
Referências:
Agroges (2019). O Futuro da Alimentação. URL: https://www.agroges.pt/o-futuro-da-alimentacao/
Alexander, P., Brown, C., Arneth, A., Finnigan, J., Rounsevell, M.D.A. (2016). Human appropriation of land for food: The role of diet. Global Environmental Change 41: 88-98.
Clark, M., Tilman, D. (2017). Comparative analysis of environmental impacts of agricultural production systems, agricultural input efficiency, and food choice, Environmental Research Letters 12 064016.
Environmental Change 69, 102313. Poore, J., Nemecek, T. (2018). Reducing food’s environmental impacts through producers and consumers. Science: 360: 987-992
FAO (2022). More Fuel for the Food/Feed Debate. Food and Agriculture Organisation of the United Nations, Rome. URL: https://www.fao.org/3/cc3134en/cc3134en.pdf.
FAO. Food and agriculture: key to achieving the 2030 agenda for sustainable development. Rome: Food and Agriculture Organization of the United Nations; 2016.
Hannah Ritchie, Pablo Rosado and Max Roser (2017) – “Meat and Dairy Production”. Published online at OurWorldInData.org. URL: https://ourworldindata.org/meat-production . Atualizado em 2023.
Jerónimo Martins (2022) Alimentação no futuro: evolução ou revolução. Conferência. URL: https://www.jeronimomartins.com/wp-content/uploads/01-DOCUMENTS/Responsibility/Conferencia/alimentacao-futuro-livro-atas.pdf [Acedido em setembro de 2023]
Li, M., Jia, N., Lenzen, M., Malik, A., Wei, L., Jin, Y., & Raubenheimer, D. (2022). Global food-miles account for nearly 20% of total food-systems emissions. Nature Food, 3(6), 445-453.
Lisboa E-Nova (2023). Mitos e Contra-Mitos na Sustentabilidade Ambiental da Alimentação. URL: https://lisboaenova.org/mitos-e-contra-mitos-na-sustentabilidade-ambiental-da-alimentacao/ [Acedido em setembro de 2023]
Morais, T. G., Teixeira, R. F. M., Lauk, C., Theurl, M. C., Winiwarter, W., Mayer, A., Kaufmann, L., Haberl, H., Domingos, T., Erb, K.-H. (2021). Agroecological measures and circular economy strategies to ensure sufficient nitrogen for sustainable farming. Global