Refugiados climáticos e a ausência de um reconhecimento e proteção legal
Com o aumento do número de pessoas que se veem obrigadas a deslocar como consequência das alterações climáticas, torna-se cada vez mais urgente definir o conceito de “refugiado climático” e implementar mecanismos internacionais para a sua proteção.
Cada vez mais pessoas são forçadas a deslocar-se dos seus países, compelidos pela subida do nível das águas, pela aridez dos solos, pela poluição dos recursos naturais, pela falta de água, por condições climatéricas adversas e por catástrofes naturais. O mais recente relatório do Internal Displacemnet Monitoring Center (IDMC) mostra que, em 2021, 22,3 milhões de pessoas deslocaram-se em resposta a desastres associados ao clima. A média anual registada entre 2008 e 2020 foi de aproximadamente 21 milhões.
Apesar do consenso sobre a intensificação de migrantes climáticos, o mesmo não acontece em relação à designação das pessoas envolvidas neste fenómeno. Como consequência desta falta de designação, não é garantida uma proteção jurídica, quer a nível internacional, quer no quadro europeu, a todas as pessoas que são obrigadas a movimentar-se e a quebrar fronteiras por força da emergência climática.
Convenção de Genebra de 1951 e Protocolo Relativo ao Estatuto de Refugiado de 1967
No domínio do direito internacional, o termo “refugiado” está associado a um instrumento legal específico: a Convenção sobre o Estatuto de Refugiado de 1951, cujo protocolo foi revisto em 1967, pelo Protocolo Relativo ao Estatuto de Refugiado. Através deste instrumento, definiu-se que um refugiado é uma pessoa que “temendo ser perseguida em virtude de sua raça, religião, nacionalidade, pertencimento a um grupo social específico ou opinião política, encontra-se fora do país de sua nacionalidade e que não pode ou, em virtude desse medo, não quer valer-se da proteção desse país“.
Este acordo, celebrado há mais de 70 anos, quando a crise do clima ainda não era uma preocupação global, não inclui aqueles que migram devido à perda total provocada por um evento meteorológico extremo relacionados com alterações climáticas. Por esta razão, diferentes organizações internacionais não usam a expressão “refugiado climático”, preferindo termos como “migrante climático”, “deslocado ambiental” ou “pessoas deslocadas por causa das alterações climáticas”.
Em 1985, Essam El-Hinnawi, especialista da agência da Organização das Nações Unidas (ONU) para o Ambiente, utilizou o termo “refugiados ambientais”, num documento oficial, popularizando esta terminologia para descrever pessoas forçadas a deixar as suas casas temporariamente ou permanentemente devido a alterações climáticas.
Contudo, em 2018, o Conselho de Direitos Humanos da ONU alertou que o termo “refugiados” não se aplica aos migrantes climáticos, uma vez que, na prática, estes não têm acesso às mesmas proteções legais. No entanto, nesse mesmo ano, a ONU reconheceu que um dos fatores que causam movimentos de pessoas em grande escala são “os impactos adversos das mudanças climáticas e da degradação ambiental”, incluindo desastres naturais, desertificação, degradação dos solos, seca hidrológica e aumento do nível do mar, através da adoção do Pacto Global para uma Migração Segura, Ordenada e Regular.
Porém, a expressão “refugiado climático” continuou popular pois consegue transmitir experiência ontológica de quem se vê obrigado a fugir da comunidade onde deveria estar seguro – o sofrimento, a perda de referências, a vulnerabilidade, o medo da morte.
A necessidade de uma moldura legal
A necessidade urgente da criação de um mecanismo internacional de apoio para os “refugiados climáticos” é irrefutável. Contudo, este mecanismo precisa de ser criado de forma a fornecer uma resposta efetiva aos desafios enfrentados por essas pessoas. O relatório “No Shelter from the Storm: The urgente need to recognise and protect climate refugees” publicado em 2021 pela Environmental Justice Foundation Charitable Trust (EJF), defende a criação de uma moldura legal internacional separada da Convenção de 1951 para reconhecer e proteger os “refugiados climáticos”. Isto para contornar conflitos, visto muitas pessoas serem contrárias à extensão dos direitos de asilo aos refugiados climáticos, devido ao aumento do nacionalismo e das fronteiras militarizadas em todo o mundo. Assim, a EJF propõe um novo estatuto que abranja toda a experiência migratória forçada, desde as deslocações motivadas por eventos climáticos extremos até às migrações decorrentes dos processos lentos de degradação associados ao clima, para que estes indivíduos possam ter acesso à proteção legal necessária.
A EJF reivindica ainda que, caso estas comunidades desejem ficar nas suas terras, os meios de financiamento por perdas e danos também devem garantir apoio às vítimas do clima. O objetivo é que estas populações possam tomar decisões “seguras e dignas” sobre o próprio futuro e o das suas famílias.
Atualmente, alguns instrumentos internacionais, apesar de não terem sido projetados especificamente para os desafios específicos enfrentados pelos refugiados climáticos, incluem a questão dos refugiados climáticos e as suas necessidades específicas. Um exemplo deste tipo de instrumento é o Pacto Global, que inclui disposições específicas relacionadas aos direitos dos migrantes afetados pelas mudanças climáticas e outras formas de desastres ambientais. Outro exemplo é Quadro Sendai para a Redução do Risco de Desastres que, sendo uma estrutura fundamentada na lei dos direitos humanos, reconhece a vulnerabilidade das pessoas mais afetadas pelos desastres naturais, incluindo medidas de proteção para os afetados por esses desastres.
A urgência da proteção legal
No presente, já estão a ocorrer eventos climáticos extremos que afetam diversas populações em diversos países, contudo a proteção legal deste grupo vulnerável ainda é um tema em debate.
Desde 1990, 30 emergências relacionadas com o clima aconteceram apenas na Somália. O país esteve exposto a eventos como seca extrema, inundações severas e pragas de gafanhotos. Este número representa o triplo dos eventos ocorridos entre 1970 e 1990. Só em 2020 as cheias provocaram 919 000 pessoas deslocadas e a devastação de 144 000 hectares de solo. Adicionalmente, estes eventos ocorreram durante um ano de pandemia, em que existiram bastantes perturbações na cadeia de abastecimento global e dos programas de ajuda humanitária e saúde pública. Estima-se que haja três milhões de somalis deslocados internamente e 642 000 procuram refúgio nos países vizinhos. Dadas as condições de desastres climáticos e conflitos sucessivos, parte desta população em movimento já se encontra ao abrigo de um estatuto de proteção.
Um dos maiores complexos do mundo para acolher refugiados encontra-se no Quénia. Este país contabilizava, em 2021, 520 mil refugiados, dos quais cerca de metade encontravam-se no complexo de Dadaab, no Nordeste queniano. Infelizmente, esta estrutura está longe de conseguir garantir as necessidades de todos os refugiados, não oferecendo a proteção e dignidade exigida.
Como referido anteriormente, a inexistência de um termo legal e universalmente aceite, principalmente pela comunidade internacional, de “refugiado climático” dificulta, por um lado, as questões relacionadas com a proteção e acesso à ajuda humanitária para pessoas deslocadas pelo clima, e, por outro, as questões relacionadas com o desenvolvimento e implementação, por parte dos da comunidade internacional e/ou decisores políticos, de políticas e ações, tanto nacionais, regionais como internacionais, direcionadas para este contexto.
Simultaneamente, verifica-se um crescente interesse e envolvimento de diferentes instituições, tanto governamentais como não-governamentais, relativamente à relação entre a migração e as alterações climáticas, especialmente sobre o impacto que este fenómeno tem sobre as comunidades humanas. Neste sentido, e apesar do não reconhecimento do termo “refugiado climáticos”, várias organizações têm desenvolvido investigações e iniciativas em termos de advocacy junto dos governos e da comunidade internacional, em particular apelando para a urgência desta temática e para a proteção das pessoas deslocadas pelo clima, e em termos de ação humanitária junto das populações afetadas pelas mudanças climáticas de início rápido, como dos processos de degradação ambiental de início lento.
Referências:
EJF [Environmental Justice Foundation Charitable Trust] (2021). No Shelter from the Storm: The urgente need to recognise and protect climate refugees. URL: https://ejfoundation.org/reports/no-shelter-from-the-storm-the-urgent-need-to-recognise-and-protect-climate-refugees [Acedido em maio de 2023]
IDMC (2022). Global Report on Internal Displacement (2022): Children and youth in internal displacement, 168 p.
Publico Azul (2022). Clima obrigou mais de 22 milhões de pessoas a deixar casas em 2021. URL: https://www.publico.pt/2022/11/18/azul/noticia/clima-obrigou-22-milhoes-pessoas-deixar-casas-2021-2026757 [Acedido em maio de 2023]
UNHCR. (2002). Convention and Protocol Relating to the Status of Refugees. URL: https://www.unhcr.org/sites/default/files/legacy-pdf/3b66c2aa10.pdf