O 22º Campeonato do Mundo de Futebol e o Catar
Começou no passado dia 20 de novembro o “Campeonato do Mundo de Futebol” – o maior evento do desporto-rei, que acontece a cada quatro anos em clima de festa e união. Este ano, a prova acontece no Catar, junta 32 seleções nacionais e adeptos de todo o mundo.
Este é, possivelmente, o Mundial mais polémico de que há memória, com uma série de cartões vermelhos a serem levantados no que às temáticas da sustentabilidade – nas suas mais diversas formas – diz respeito.
Mas importa, antes de começar, não ter memória curta e notar que também os mundiais passados tiveram os seus problemas, assim como outras questões em que a Federação Internacional de Futebol (FIFA) está envolvida. Como é referido na edição da revista Sábado n.º 968, correspondente à semana 17 a 23 de novembro, “Há muito que o futebol e a FIFA andam lado a lado com regimes corruptos e ditatoriais, servindo muitas vezes para branquear a respetiva natureza. O Catar é apenas o exemplo mais recente. (…) Há quatro anos o Mundial foi organizado pela Rússia (…) que já tinha invadido a Crimeia, assassinado dissidentes e, entre outras coisas, vetado a investigação ao uso de armas químicas na Síria. Em 2014 (…) no Brasil, então mergulhado no escândalo Lava Jato. Quatro anos antes a África do Sul conseguiu a organização do campeonato do mundo graças ao pagamento de 10 milhões de dólares a responsáveis da FIFA. O Mundial de 1986 (…) ocorreu no México, país dominado pelos cartéis de droga. (…) em 1978, (…) na Argentina governada então pela ditadura militar (…). Em 1934, o campeonato realizou-se na Itália fascista de Mussolini”.
Olhemos então para o Catar
O Catar é um país com pouco mais de 11 500 km2, localizado na Ásia Ocidental, na Península Arábica. O país é considerado um emirado, tendo seu território administrado por um membro da classe dominante. É uma das nações mais ricas do mundo, com um 179,6 mil milhões USD (2021) e de acordo com o relatório do PNUD está na posição 42 do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) – a título comparativo, Portugal está no lugar 38.
Qual o preço deste Mundial? Diversas fontes indicam mais de 200 mil milhões de euros em estádios e outras infraestruturas e entre 6 500 a 15 mil trabalhadores mortos.
As polémicas económicas
A história é longa e começa em dezembro de 2010, quando o Catar é anunciado como o país acolhedor e as controvérsias começam. Sedear o Mundial num país sem qualquer tradição futebolística foi questionado. Desde logo surgiram suspeitas de ‘batota’ e favorecimento sobre a candidatura vencedora, que apesar de tudo, avançou.
Em agosto de 2012, a Divisão de Investigação do Comité de Ética da FIFA iniciou uma investigação sobre a atribuição do Campeonato do Mundo de 2018 à Rússia e do Campeonato do Mundo de 2022 ao Catar. O presidente da câmara de julgamento do comité de ética da FIFA, Hans-Joachim Eckert, afirmou que o relatório Garcia continha “comportamento questionável”, embora não tivesse posto em causa o processo de adjudicação. Este relatório denunciou uma apresentação “errada e incompleta” da sua investigação e anunciou que iria recorrer.
A 27 de junho de 2017, o relatório Garcia foi publicado pela FIFA após fugas de informação na imprensa, identificando uma série de transações financeiras potencialmente suspeitas, mas que não fornecia provas suficientes para retirar a organização do Campeonato do Mundo do Catar.
A 8 de janeiro de 2014, Jérôme Valcke, o então Secretário-Geral da FIFA declarou que o Campeonato do Mundo não se realizaria “em junho/julho”, mas entre 15 de janeiro o mais tardar”, numa entrevista transmitida pela France Info e pelas estações de rádio France Inter. Confirmou-se a opção já colocada por Sepp Blatter, o então presidente da FIFA, face aos “problemas ligados ao calor”, dado que no verão, as temperaturas podem subir até aos 50ºC no Catar.
A 25 de setembro de 2015, o comité executivo da FIFA decidiu que a competição iria realizar-se de 21 de novembro a 18 de dezembro de 2022. Em paralelo, pela primeira vez, o Campeonato do Mundo de Futebol realiza-se no final do ano civil, interrompendo as ligas europeias de clubes, causando desagrado entre os clubes europeus.
As polémicas sociais
Ao longo dos últimos 12 anos diversas organizações de direitos humanos fizeram denúncias em relação às condições precárias a que trabalhadores imigrantes eram submetidos, com violações contínuas dos seus direitos.
Em 2014, as organizações sindicais internacionais apresentaram à Organização Internacional do Trabalho (OIT) uma queixa contra o país, pelas suas práticas não conformes com as normas internacionais do trabalho, destacando-se o sistema Kafala, que potenciava a exploração e trabalho forçado. Em 2017, o Catar pagou 25 milhões de dólares à Organização Internacional do Trabalho (OIT) para “amparar” os trabalhadores migrantes no país. A prática, embora legal, coloca em causa a independência da organização, na medida em que as condições de trabalho no emirado são criticadas pelas ONGs. Desde 2018, a OIT tem um escritório permanente em Doha.
Embora a Amnistia Internacional tenha revelado que, entre 2010 e 2019, morreram, pelo menos 15 mil trabalhadores não-cataris, de todas as idades e ocupações, sem contar com as dezenas de milhares de feridos, outras organizações falam em 6 500 mortos. O número de 15 021 mortes citado pela Amnistia Internacional foi obtido a partir das estatísticas oficiais das próprias autoridades do Catar e refere-se ao número de estrangeiros que morreram no país entre 2010 e 2019. Entre 2011 e 2020, foram 15 799 mortes. A OIT diz que os números são enganadores. A contabilização torna-se mais difícil porque em boa parte das certidões de óbito aparece “causa natural”.
Em conclusão, os números relativos a mortes relacionadas com o Mundial de Futebol de 2022 variam consoante a definição, incluindo de onde vieram os trabalhadores migrantes, onde e quando morreram, e se as suas mortes podem ser descritas como relacionadas com o trabalho ou não. No entanto, dadas as inconsistências e deficiências nos próprios dados oficiais do Catar, é impossível chegar a uma conclusão concreta, o que, por sua vez, levanta a questão de saber por que razão exatamente as autoridades do Catar não são capazes de fornecer informações fiáveis. Só uma investigação independente permitirá saber quantos trabalhadores morreram na construção de estádios e outras infraestruturas no Catar.
Figura. 1 – Um número de mortos sem precedentes no Catar [Fonte: The Guardian, Building and Wood Workers International, WorkSafe British Columbia, Al Jazeera, The New York Time, International Trade Union Confederation]
Atualização: O primeiro gráfico apresentado foi amplamente divulgado pelas redes sociais. O The Washington Post corrigiu-o por considerar que induzia o leitor em erro, criando a ideia que mais de 1 000 trabalhadores morreram a trabalhar no Mundial 2022. O jornal declara que “O artigo e infografia foram revistos para fornecer uma imagem precisa do que é conhecido até ao momento”.
Os patrocinadores e as várias federações, sob pressão de ONGs, que pedem um fundo de compensação, tendo a FIFA respondido que estava em “diálogo” sobre “iniciativas” para ajudar os trabalhadores nos estaleiros de construção do Campeonato do Mundo. Desde maio deste ano, a Amnistia Internacional e outras organizações não-governamentais têm em curso a campanha #PayUpFIFA, em que pedem à FIFA que reserve 433 milhões de dólares (415 milhões de euros) para o fundo destinado a indemnizar não apenas as famílias dos trabalhadores que morreram na construção dos estádios, mas também os que ficaram feridos, os que regressaram aos seus países de origem com salários em atraso ou foram vítimas de abuso dos empregadores.
Outras questões têm vindo a ser colocadas no que respeita aos direitos das minorias, nomeadamente as mulheres e a comunidade LGBT+. À semelhança de outros países Árabes, também no Catar a situação tem melhorado consideravelmente nas últimas décadas, mas os direitos das mulheres permanecem limitados. Por sua vez, a homossexualidade é considerada um crime, punível com vários anos de prisão.
Os membros da comunidade LGBT+ também estão sob vigilância neste estado muçulmano, onde a legislação criminaliza as relações sexuais entre pessoas do mesmo sexo. De um modo contraditório, os organizadores comprometem-se a acolher “todos” os visitantes sem discriminação, desde que “respeitem as regras do país”.
As forças do Departamento de Segurança Preventiva do Catar prenderam arbitrariamente pessoas lésbicas, gays, bissexuais e transgéneros e submeteram-nas a maus-tratos na detenção, segundo a Human Rights Watch. Os entrevistados LGBT revelaram que os seus maus-tratos ocorreram em setembro de 2022, quando o Catar se preparava para sediar a Prova da FIFA e o governo estava sob intenso escrutínio por desrespeito aos direitos humanos.
A Human Rights Watch documentou ainda seis casos de espancamentos graves e repetidos, assim como cinco casos de assédio sexual sob custódia policial entre 2019 e 2022. As forças de segurança prenderam pessoas em locais públicos com base apenas na sua expressão de género e fizeram buscas ilegais nos seus telemóveis. Como requisito para a sua libertação, as forças de segurança exigiram que as mulheres transgénero detidas participassem em sessões de terapia de conversão num centro de “saúde comportamental”, patrocinado pelo governo.
Num relatório de 2021, a Human Rights Watch documentou que as leis, regulamentos e práticas do Catar impõem regras discriminatórias de tutela masculina, que negam às mulheres o direito de tomar decisões importantes sobre as suas vidas. No Catar, as mulheres devem obter permissão dos seus “guardiões” do sexo masculino (membros da família do sexo masculino) para se casar, estudar no exterior com bolsas do governo, trabalhar em muitos empregos do governo, viajar para o exterior até certas idades e receber certos cuidados de saúde reprodutiva.
O Mundial 2022 está manchado pela corrupção, mortes de trabalhadores migrantes e desrespeito pelos mais variados direitos humanos. A cerimónia de abertura, que teve Morgan Freeman como estrela, tentou “celebrar a diversidade”, garantindo que o país fez “todos os esforços e investimentos para o bem da humanidade“. A opinião pública geral é contrária – o país não conseguiu.
Na próxima semana, regressaremos ao Catar para nos focarmos nas questões de sustentabilidade ambiental. Num país quente e húmido, o que é necessário para permitir o conforto dos atletas e adeptos? Como foram construídos os estádios e o que lhes vai acontecer? O que está a FIFA a fazer, enquanto entidade máxima do futebol, para minimizar o impacte ambiental negativo das suas iniciativas?
Fontes:
O País do respeito e do segredo. Revista Sábado n.º 968, correspondente à semana 17 a 23 de novembro. Ler completo: https://www.sabado.pt/opiniao/cronistas/nuno-tiago-pinto/detalhe/o-pais-do-respeito-e-do-segredo
Human Rights Watch. Qatar: Rights Abuses Stain FIFA World Cup. URL: https://www.hrw.org/news/2022/11/14/qatar-rights-abuses-stain-fifa-world-cup [consultado em novembro de 2022];
Qatar: Security Forces Arrest, Abuse LGBT People. URL: https://www.hrw.org/news/2022/10/24/qatar-security-forces-arrest-abuse-lgbt-people
https://www.wort.lu/pt/desporto/12-anos-de-polemicas-ate-ao-mundial-do-qatar-2022-63720bcdde135b92369858ff [consultado em novembro de 2022].