Rewilding e o contexto dos incêndios
O texto da semana anterior teve como principal objetivo desmistificar o conceito de Rewilding e distingui-lo do de Conservação da Natureza. Abordámos também os princípios subjacentes ao Rewilding e ainda o seu enquadramento na Década das Nações Unidas para o Restauro dos Ecossistemas. Nesta semana, exploramos a importância do Rewilding na luta contra os incêndios florestais.
Os incêndios e as perdas geradas na biodiversidade
O risco de incêndios florestais está a crescer cada vez mais em todo o mundo, havendo registo de incêndios excecionalmente graves nos EUA, Austrália, Espanha e Portugal. Os incêndios não só destroem ecossistemas, como também causam grandes prejuízos económicos. O Mediterrâneo representa cerca de 85% da área ardida na Europa todos os anos, o que se deve a um clima extremo, agravado por problemas de despovoamento rural, espécies de árvores inflamáveis, invasão de zonas urbanas por arbustos, assim como más políticas de gestão florestal.
No caso dos incêndios rurais, estes afetam a biodiversidade de várias maneiras. Para o lobo ibérico, por exemplo, o fogo significa menos presas selvagens e mudança dos indivíduos da população de uma área preferida e com as condições ideais para um habitat menos adequado. Estes incêndios podem, também, destruir os locais de reprodução do lobo, e, na pior das hipóteses, levar à mortalidade direta da espécie. As consequências também se verificam ao nível do solo, havendo degradação do mesmo, destruição do banco de sementes e redução da biodiversidade local de espécies vegetais. Importa referir que as plantas mais resilientes ao fogo e tolerantes a solos pobres são as giestas. Com a ocorrência frequente de incêndios, a paisagem pode passar a ser dominada por estas plantas, o que poderá impedir o crescimento de outras árvores, contribuindo para o empobrecimento dos solos e para uma paisagem sem heterogeneidade e com menor valor ecológico. Os solos pobres apresentam valores baixos de matéria orgânica, possivelmente não só devido aos incêndios, mas também a recorrentes queimadas praticadas nas áreas e também a práticas históricas do uso da terra para agricultura.
Os ecossistemas mais simplificados e com menos espécies prejudicam também as próprias pessoas, pois dado que os solos não são tão produtivos, isto é, com menor capacidade para captura de carbono e menor capacidade de retenção de água pela vegetação devida à capacidade de infiltração reduzida, as práticas agrícolas ficarão, certamente, afetadas.
Rewilding, a “brigada” natural no combate aos incêndios
Relembrando o conceito de rewilding como sendo a forma de deixar a natureza cuidar de si mesma e respeitar o ritmo natural da vida selvagem, foquemo-nos na engrenagem que faz a natureza funcionar e os processos naturais – como as cadeias tróficas. Tomando como ponto de partida cadeias tróficas completas, é possível esperar um equilíbrio dinâmico que evoluirá com predadores e que equilibra o papel dos herbívoros no seu impacte nas pastagens e nas florestas, ao abrirem grandes extensões de vegetação. Desta forma, a probabilidade de incêndios é menor, criando-se habitats para muitas outras espécies.
Outro fator a considerar é a escala, dado que a maioria dos processos naturais só pode funcionar a um nível de paisagem. Por exemplo, os herbívoros precisam de migrar e os rios precisam de espaço para seguir o seu curso. Há que ter em consideração, também, outras duas escalas: a escala do tempo e a escala da abundância. A escala do tempo tem em conta a destruição da natureza e as décadas para esta se conseguir restaurar, e a escala da abundância considera a quantidade de biomassa existente numa determinada paisagem, desde o número e diversidade de animais até ao tamanho e diversidade de árvores.
De acordo com as cadeias tróficas e atendendo às escalas de tempo e de abundância, o rewilding pode dar o seu contributo como estratégia natural e com baixo custo para o controlo dos incêndios, aumentando a biodiversidade local, nomeadamente através do pastoreio por grandes manadas de herbívoros, como cavalos e gado selvagem.
O papel fundamental da herbivoria selvagem – O caso dos cavalos Sorraia
Um dos principais processos a ser monitorizado é o impacte da introdução de herbívoros em regime semisselvagem, na estrutura da vegetação e a biomassa – ambos fatores fundamentais para determinar se a paisagem é mais ou menos vulnerável a incêndios -, a composição de espécies de plantas, o recrutamento de carvalhos e a condição do solo.
O cavalo Sorraia é uma raça autóctone portuguesa, que tem uma população de apenas cerca de 200 exemplares em todo o mundo, sendo uma espécie de herbívoro utilizada no processo de monitorização. Tido como uma linhagem do ancestral selvagem do cavalo ibérico, o Cavalo Sorraia apresenta este nome por ter sido uma espécie recuperada a partir de um núcleo de animais encontrado no vale do Rio Sorraia, em Coruche.
Os Sorraia são cavalos selvagens extremamente resistentes às condições ambientais, característica herdada pelos seus primitivos ancestrais, cuja função se pretende recuperar nos ecossistemas. Enquanto herbívoros, têm um papel fundamental em ajudar a modelar a floresta, mantendo as pastagens e áreas abertas, através do pastoreio natural. São uma espécie aliada na diminuição do risco de incêndios florestais e rurais, exatamente por contribuírem para a regeneração da paisagem.
O objetivo cerne desta introdução passa por utilizar as funções semisselvagens desta espécie enquanto grande herbívoro para o consumo e gestão de biomassa, criando mosaicos na vegetação.
O caso dos Sorraia é o exemplo pioneiro de monitorização rewilding no combate aos incêndios aproveitando o contexto e os recursos disponíveis na natureza. Contudo, os exemplos de rewilding não ficam por aqui, uma vez que podem ser aplicados noutros contextos, como cidades, tema que será abordado na próxima semana.
Fontes:
Rewilding Europe. URL: https://rewildingeurope.com/ [consultado em agosto de 2022];
Rewilding Portugal. URL: https://rewilding-portugal.com/ [consultado em agosto de 2022];
Rewilding Portugal. Rewilding. URL: https://rewilding-portugal.com/pt/rewilding/ [consultado em agosto de 2022];
Rewilding Portugal. Rewilding. URL: https://rewilding-portugal.com/pt/sobre-nos/relatorios-anuais/ [consultado em agosto de 2022];
Wild 2021 – O Ano do Sorraia. URL: https://www.docdroid.net/YrFOOGo/rp-2021-port-final-pdf [consultado em agosto de 2022].